5 de abr. de 2010

Que Lição

Gosto muito dessa introdução do livro O Elogio da Bobagem, de Alice Viveiros de Castro, grande pesquisadora brasileira da arte do palhaço. Sempre o leio e achei importante compartilhar, aqui no cybermundinho, com os amigos internautas.

O palhaço é a figura cômica por excelência. Ele é a mais enlouquecida expressão da comicidade: é tragicamente cômico. Tudo que é alucinante, violento, excêntrico e absurdo é próprio do palhaço. Ele não tem nenhum compromisso com qualquer aparência de realidade. O palhaço é comicidade pura.

O palhaço não é um personagem exclusivo do circo. Foi no picadeiro que ele atingiu a plenitude e finalmente assumiu o papel de protagonista. Mas o nome palhaço surgiu muito antes do chamado circo moderno. Aliás, seria melhor dizer “os nomes”. Uma das grandes dificuldades que a maioria dos autores encontra ao estudar a origem dos palhaços está na profusão de nomes que essa figura assume em cada momento e lugar. Clown, grotesco, truão, bobo, excêntrico, Tony, augusto, jogral, são apenas alguns dos nomes mais comuns que usamos para nos referir a essa figura louca, capaz de provocar gargalhadas ao primeiro olhar.

O que nos interessa neste estudo é o arquétipo. Esse ser que parece vindo de um outro planeta tão semelhante ao nosso, essa figura que não é ninguém que conhecemos e que no entanto reconhecemos ao primeiro olhar, não surgiu em um momento definido, foi sendo construída ao longo de séculos e assumindo papéis e formatos diferenciados, tendo como única função provocar, pelo espanto, o riso.

Em português temos um nome comum para todas as possíveis formas assumidas por essa figura: PALHAÇO. Mais adiante, vamos enfocar essas diferentes facetas e nomes. Agora, no entanto, o que queremos ressaltar é que ninguém tem dúvida quando se depara com uma dessas figuras: “Esse é um palhaço!” E não importa se sua cabeleira é vermelha e os sapatos enormes ou se, ao contrário, ele veste um sóbrio terno e está sem nenhuma maquiagem. Identificamos um palhaço não apenas pela forma, mas principalmente pela capacidade de nos colocar, como espectadores, num estado de suspensão e tensão que, em segundos – sabemos de antemão -, vai explodir em risos.

Imagino que o primeiro palhaço surgiu numa noite qualquer em uma indefinida caverna enquanto nossos antepassados terminavam um lauto banquete junto ao fogo. Em volta da fogueira, numa roda de companheiros, jogavam conversa fora. Comentavam a caçada que agora era jantar e falavam das artimanhas usadas, dos truques e da valentia de cada um. É quando um deles começa a imitar os amigos e exagera na atitude do valentão que se faz grande, temerário e risível na sua ânsia de sobrepujar a todos. E logo passa a representar as momices do covarde, seus cuidados para se esquivar do combate, sempre exagerando nos gestos, abusando das caretas, apontando tão absurdamente as intenções por trás de cada ação e o ridículo delas que o riso se instala naquela assembléia de trogloditas. E todos descobrem o prazer de rir entre companheiros, de rir de si mesmo ao rir dos outros...

Esse nosso personagem imaginário sobrevivei a todas as catástrofes naturais, inclusive as construídas pelos homens. Esteve presente nas batalhas, nas festas e nos rituais mais sagrados, sempre cumprindo a mesmo papel: provocar o riso.

Muitos estudos foram feitos sobre este fenômeno: o riso. “O homem é o único animal que ri” – disse Aristóteles. Mas por quê? Qual a função do riso? Não vamos aqui nos dedicar a essa discussão, não é esta a nossa questão. Rimos porque é bom e isso basta. O prazer tem sentido em si mesmo, não precisa de explicação. E aí talvez esteja um dos pontos mais importantes da figura do palhaço: sua gratuidade. Sua função social e fazer rir e dar prazer. Ele não descobre as leis que regem o universo, mas nos faz viver com mais felicidade. E esta é sua incomparável função na sociedade. Enquanto milhões se dedicam às nobres tarefas de matar, se apossar de territórios vizinhos e acumular riquezas, o palhaço empenha-se em provocar o riso de seus semelhantes. Ele não se dedica às grandes questões do espírito nem às “altas prosopopéias” filosóficas; gasta seu tempo e o nosso com... bobagens.

O palhaço é o sacerdote da besteira, das inutilidades, da bobeira... Tudo o que não têm importância lhe interessa. É corriqueira a cena em que o palhaço vai fazer alguma coisa muito séria e importante – como, por exemplo, tocar uma peça de música clássica – e acaba nos entretendo com algum detalhe absolutamente insignificante. É o caso do grande Grock tocando violino.: ele chega, cumprimenta a platéia, posiciona o instrumento e, num gesto de pura futilidade, frescura e bobeira, atira para o alto o arco do violino esperando pegá-lo no ar. Mas ele falha. Contrariado com o detalhe, esquece-se do principal e se dedica a tentar pegar o arco no ar. E então, hipnotizados, nos esquecemos do concerto e passamos um tempo enorme nos deliciando com aquele tonto que não consegue pegar o arco do violino no ar! Bobagem pura, mas um momento mágico e inesquecível...

Durante milênios e até nos dias de hoje valorizamos a sabedoria e a capacidade para vencer, seja lá o que isso signifique. Por isso a apologia do trabalho, da moderação, do equilíbrio. Grandes valores sem dúvida, mas a vida não é só isso: existe a farra, a festa, o prazer! E assim o homem vai vivendo, equilibrando-se entre os contrários, compreendendo a necessidade de “ganhar o pão de cada dia com o suor de seu rosto”, mas criando mecanismos para escapar das pressões cotidianas, reagir aos exageros dos puritanos e se contrapor á tristeza e á violência do mundo.

Millôr Fernandes complementou Aristóteles dizendo que “o homem é o único animal que ri e é rindo que ele mostra o animal que é”. Pronto. A principal função do riso e nos recolocar diante da nossa mais pura essência: somos animais. Nem deuses nem semi-deuses, meras bestas tontas que comem, bebem, amam e lutam desesperadamente para sobreviver. A consciência disso é que nos faz únicos, humanos.

A frase de Millôr nos traz também outras leituras. Existe ética no riso? Rimos de qualquer coisa? E onde fica o politicamente correto tão em voga nos nossos tempos? Piadas sexistas, racistas, excludentes, reforçadoras de preconceitos provocam o riso? Claro que sim. O ser humano é uma besta, não é mesmo?

Este livro pretende contar a história desse personagem fascinante e ajudar os futuros palhaços a compreenderem melhor as imensas possibilidades do seu papel social. Que cada um se sinta à vontade para realizar suas escolhas. Que riso provocar? Rir do quê? Com quem? Reservamos um espaço todo especial para a ética no final do livro. Compreendendo melhor o que é um palhaço poderemos escolher, com mais consciência, o palhaço que queremos ver e aquele que queremos ser.
(O Elogio da Bobagem – palhaços do Brasil e do mundo. Alice Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005)
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Um comentário:

  1. cheguei aqui por acaso e adorei ! fico muito feliz de ver O Elogio voando por aí e encontrando narizes pelo mundo.... um grande beijo e umas tortas na cara !

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